Fertilizantes produzidos com lodo de esgoto são seguros, sustentáveis e uma ótima alternativa para a agricultura
*Fernando Carvalho Oliveira, da Tera Nutrição Vegetal.
A ciência vem demonstrando de maneira consistente que o lodo de esgoto sanitário pode ser transformado em fertilizantes orgânicos e condicionadores de solo sustentáveis, nutritivos e seguros para uso agrícola. O que antes era considerado rejeito, hoje é matéria prima para obtenção de insumos de qualidade. Basta tratá-lo de maneira adequada.
A compostagem é uma das principais tecnologias que viabilizam esse tratamento. O processo é fascinante sob os aspectos ambiental, técnico e da economia circular: resíduos orgânicos de estações de tratamento de esgoto, da indústria e de atividades urbanas, passam por etapas rigorosas de estabilização. A compostagem termofílica, por exemplo, submete esses resíduos a temperaturas elevadas (55°C a 70°C), durante várias semanas, o que elimina patógenos e sementes de plantas invasoras, reduz a massa e transforma em matéria orgânica rica em húmus, nutrientes e vida microbiológica.
Ademais é necessário ampliar o conhecimento técnico e a conscientização sobre o papel estratégico desses fertilizantes e condicionadores na regeneração dos solos agrícolas. Um exemplo notável é o adubo obtido por meio da compostagem termofílica de lodo de esgoto sanitário. Esse processo resulta em um fertilizante orgânico composto, ou ainda organomineral quando enriquecido com nutrientes minerais, bioestável, rico em matéria orgânica humificada e nutrientes essenciais, como nitrogênio, fósforo, potássio, calcio, magnesio e enxofre além de micronutrientes como zinco, molibdênio e níquel. Com teor de umidade controlado (35 a 40%) e pH em torno da neutralidade, esse insumo melhora significativamente as características físicas e químicas do solo, aumentando sua capacidade de retenção de água, estimulando o desenvolvimento radicular e contribuindo para o incremento sustentável da produtividade agrícola. Além disso, atende integralmente às exigências legais para a classificação como Fertilizante Orgânico Composto Classe B, sendo microbiologicamente seguro, ambientalmente estável e agronomicamente eficaz.
Cabe ressaltar que esse fertilizante orgânico contribui para o aumento da eficiência no uso de fertilizantes minerais, podendo substitui-lo parcialmente em proporções que variam conforme a cultura e o manejo, chegando em alguns casos a até 50%.
A prática não é nova. Países como Estados Unidos, Canadá, Austrália e diversas nações europeias já reciclam o lodo de esgoto na agricultura há décadas. No Brasil, embora as pesquisas sobre o tema datem do final da década de 1970, o uso operacional só se consolidou a partir do fim dos anos 1990. Nossa legislação evoluiu bastante: hoje, a utilização agrícola do lodo de esgoto está regulamentada como fertilizante orgânico pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA), por meio da Instrução Normativa SDA nº 61/2020), ou como resíduo aplicado diretamente no solo, pela Resolução nº 498/2020 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA).
Todo o marco regulatório brasileiro que disciplina o aproveitamento agrícola do lodo de esgoto foi desenvolvido nos últimos 25 anos, em estreito alinhamento com os avanços da ciência nacional e internacional. Houve notória participação de pesquisadores científicos de universidades e centros de pesquisa públicos, como a Embrapa, universidades estaduais e federais, além de técnicos altamente qualificados – muitos com títulos de doutorado e pós-doutorado – atuantes em empresas de saneamento básico, Ministério da Agricultura e Pecuária, Ministério do Meio Ambiente e órgãos ambientais estaduais, como a CETESB (SP), IAT (PR), FEAM (MG), INEA (RJ), FEPAM (RS), entre outros. Esse arcabouço técnico e legal reflete maturidade do Brasil no tema e o compromisso das instituições com a segurança, a sustentabilidade e o uso racional dos recursos.
A Instrução Normativa nº 61/2020, publicada pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), estabelece critérios rigorosos para o registro, produção, importação e comercialização de fertilizantes, corretivos, inoculantes e biofertilizantes no país. Juntamente com a Instrução Normativa nº 7/2016, elas definem limites para qualidade e tolerância a contaminantes, além de procedimentos de fiscalização e controle de qualidade, garantindo a segurança e a eficácia dos insumos agrícolas. No Estado de São Paulo por exemplo, sua companhia ambiental – a CETESB -, é responsável pelo licenciamento da atividade de tratamento e transformação do lodo de esgoto em fertilizantes e condicionadores de solo, como também analisa previamente o potencial de aproveitamento do resíduo para esta finalidade, sempre atenta aos critérios de segurança ambiental.
No âmbito internacional observa-se robusto respaldo técnico sobre a eficácia e segurança dos fertilizantes orgânicos gerados através de lodo de esgoto sanitário. A Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (EPA), por exemplo, estabeleceu um marco regulatório (40 CFR Part 503) baseado em avaliações de risco que garantem a segurança sanitária do uso agrícola de lodo de esgoto. A Comissão Europeia, por meio do seu Centro Comum de Pesquisa (JRC), também publicou estudo técnico criterioso demonstrando que, com controle adequado de contaminantes emergentes e metais pesados, o uso desses materiais é plenamente seguro.
A Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) e a Organização Mundial da Saúde (OMS), em diretrizes conjuntas, reforçam a possibilidade do reaproveitamento de resíduos gerados através de efluentes industriais e resíduos sanitários na agricultura. Sempre com a ressalva de que se exige o devido tratamento.
À medida que novas tecnologias analíticas e científicas avançam, poluentes emergentes passam a ser estudados com mais profundidade. Essa evolução não desmerece o trabalho técnico e normativo já consolidado na atualidade, mas sim reforça a importância do aprimoramento contínuo de processos, monitoramentos e protocolos de segurança. Da mesma forma que, no passado, os chamados metais pesados e os microrganismos patogênicos representaram desafios importantes – hoje amplamente superados, mas ainda objeto de rigoroso controle – , os novos contaminantes representam oportunidades para reforçar ainda mais a segurança e a confiabilidade da prática do reaproveitamento agrícola de lodos tratados.
A transformação do lodo de esgoto em fertilizante ou condicionador de solos é também uma solução inteligente para os desafios urbanos. Esses resíduos, gerados em grande volume em áreas densamente povoadas, podem ser processados em plantas de co-compostagem que recebam também resíduos de alimentos pré e pós consumo, coletados em shoppings, supermercados, indústrias e refeitórios corporativos. O co-tratamento dessas diversas fontes, seguindo protocolos rigorosos de higiene e equilíbrio entre carbono e nitrogênio, também permite a produção de insumos agricolas de alta qualidade, eficazes e seguros.
O preconceito e as “fake news” sobre o processo têm origem na desinformação técnica: trata-se de um produto totalmente estabilizado e sanitariamente seguro, com identidade agronômica definida e registrado e registrado no Ministério da Agricultura e Pecuária, com comprovação laboratorial de sua qualidade e segurança. Ignorar essa solução é desperdiçar um recurso valioso e perpetuar práticas insustentáveis.
Em um cenário de escassez de recursos naturais, crise climática e pressão por eficiência na produção de alimentos, utilizar fertilizantes orgânicos e condicionadores de solos produzidos a partir de resíduos é possível e necessário. Afinal, os adubos feitos com lodos de esgotos, cuja eficácia agrícola é comprovada, podem ser utilizados com absoluta segurança agronômica, ambiental e sanitária, desde que submetidos a tratamento adequado, baseado em métodos eficazes e comprovados, como a compostagem termofílica, e respeitando normas técnicas rigorosas. A ciência já validou, a tecnologia já permite, e a legislação já ampara. Falta apenas vencer o improcedente ceticismo.
*Fernando Carvalho Oliveira é doutor em Agronomia, com ênfase em Solos e Nutrição de Plantas, pela Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” (ESALQ/USP). Especialista no tratamento de resíduos orgânicos e economia circular, atua como responsável técnico pelos fertilizantes orgânicos compostos da Tera Nutrição Vegetal.