Confiabilidade de Peças produzidas por Manufatura Aditiva: Por que a Articulação em Rede é uma boa opção para o Brasil?
*por Gustavo Daniel Donatelli, Diretor Executivo do Centro de Metrologia e Instrumentação da Fundação CERTI; e Pedro Yoshito Noritomi, Chefe da Divisão de Tecnologias para Produção e Saúde do CTI Renato Archer.

A Manufatura Aditiva (MA), também chamada de impressão 3D, deixou de ser apenas uma promessa futurista para se tornar parte do mainstream da indústria global. Nos últimos anos, a tecnologia ganhou enorme visibilidade, alimentada pelo potencial em transformar cadeias produtivas, acelerar a inovação e democratizar a fabricação de produtos. Hoje, mais do que uma tendência emergente, a MA é reconhecida como uma ferramenta estratégica para setores de alta complexidade.
Relatórios internacionais indicam que o mercado global de Manufatura Aditiva (MA) segue em forte expansão. O Wohlers Report 2025, publicado pela ASTM, estima que o setor movimentou cerca de US$ 21,9 bilhões em 2024, com projeção de atingir US$ 115 bilhões até 2034, impulsionado pela crescente adoção industrial em setores como aeroespacial, energia e saúde [1] .
No contexto brasileiro, o mercado de MA também apresenta crescimento expressivo, tendo gerado aproximadamente US$ 1,19 bilhão em 2023, com expectativa de alcançar US$ 4,44 bilhões até 2030 — o que representa uma taxa média anual de expansão de 20,8 % no período de 2024 a 2030 [2][3] .
As vantagens são claras: a MA permite a fabricação de peças com geometrias complexas, possibilitando a aplicação de novas técnicas de engenharia para redução peso e otimização de uso de materiais, além de contribuir para a personalização em massa e viabilizar a produção de peças sobressalentes sob demanda, reduzindo estoques e custos logísticos. Isso explica por que a tecnologia vem ocupando cada vez mais espaço nas estratégias de empresas ligadas aos setores aeroespacial, defesa, saúde e energia.
No entanto, por trás dessa promessa de inovação, existe um paradoxo que limita sua adoção em larga escala: a confiança na tecnologia ainda é uma barreira significativa. É nesse ponto que surge o desafio da qualificação.
O Desafio da Confiabilidade: Por que a qualificação essencial
Garantir que uma peça fabricada aditivamente seja confiável vai muito além de “imprimir bem”. A literatura reporta a existência de quase 130 parâmetros de processo que influenciam a qualidade final em tecnologias de deposição metálica, especialmente nos processos PBF (Powder Bed Fusion) e DED (Directed Energy Deposition). Esses parâmetros abrangem desde o design e a matéria-prima até o equipamento, software, operadores e etapas de pós-processamento. Fatores como calibração das máquinas, refinamento de parâmetros de processamento, controle de qualidade dos pós-metálicos e tratamentos térmicos são fontes de variabilidade que tornam a repetibilidade e a confiabilidade grandes desafios da tecnologia [4] .
No entanto, é importante destacar que a MA engloba um universo muito mais amplo do que os processos metálicos. Existem mais de 40 técnicas distintas, agrupadas em sete categorias principais segundo a ISO/ASTM 52900:2021: fusão em leito de pó, extrusão de material, fotopolimerização, jateamento de aglutinante, laminação, jateamento de material e deposição direcionada de energia [5] . Cada técnica possui diferentes princípios físicos, requisitos de controle e campos de aplicação.
Além disso, a MA permite o processamento de diversas classes de materiais — incluindo metais, polímeros, cerâmicas, compósitos e até biomateriais, com potencial para incorporação de fármacos e células vivas. Essa diversidade amplia as possibilidades de aplicação industrial, mas também aumenta a complexidade técnica associada à seleção da tecnologia mais adequada.
Para reduzir essas incertezas, os processos de qualificação exigem a aplicação de ensaios rigorosos nas peças finais, incluindo tanto ensaios destrutivos (como tração, fadiga, tenacidade à fratura e análise metalográfica) quanto ensaios não destrutivos (END) (como tomografia computadorizada de raios X, ultrassom phased array, inspeção por partículas magnéticas, líquidos penetrantes e análise dimensional de alta precisão). Esses ensaios são fundamentais para identificar defeitos como porosidade, trincas térmicas e falta de fusão, que podem comprometer seriamente a integridade de componentes em uso [6][7] .
No entanto, organismos internacionais como a DNV e a IACS destacam que os requisitos de qualificação e ensaios variam conforme a criticidade da peça.
Enquanto componentes de baixa criticidade podem ser aprovados com pacotes mínimos de testes, peças classificadas como críticas, aplicadas em setores como offshore, aeroespacial ou sistemas de segurança, demandam protocolos extensivos de caracterização mecânica, metalográfica e END, muitas vezes sob supervisão direta de sociedades classificadoras [8][9] .
Essa abordagem baseada em risco busca equilibrar confiabilidade e viabilidade econômica, garantindo que os esforços de qualificação sejam proporcionais ao impacto potencial de uma falha. Mas, no Brasil, esse desafio técnico é agravado por outro fator: a fragmentação do ecossistema de competências.
Fragmentação de competências: O gargalo do ecossistema nacional
A complexidade da qualificação em MA é intensificada pela realidade brasileira. Embora o país possua uma infraestrutura consolidada de qualidade em setores tradicionais, ainda há uma carência específica para a manufatura aditiva. Faltam laboratórios para ensaios não destrutivos, profissionais certificados para análise de resultados e protocolos normativos adaptados.
Além disso, as competências necessárias — como ciência dos materiais, DfAM (Design for Additive Manufacturing), engenharia de processos, metrologia avançada e certificação — estão dispersas entre diferentes atores: universidades, institutos de pesquisa, fornecedores de tecnologia e consultores especializados. Para uma empresa usuária, navegar nessa rede fragmentada é custoso, lento e arriscado.
A experiência internacional mostra que esse desafio não é exclusivo do Brasil e que a solução passa pela articulação em rede. E essa lógica já foi adotada com sucesso em diferentes países.
O poder das redes: como modelos colaborativos aceleram a inovação
Para superar a complexidade técnica e a fragmentação do ecossistema, a articulação em rede emerge como uma estratégia inteligente e necessária. A teoria das redes sociais fornece uma base conceitual sólida para compreender esse modelo.
Uma análise de literatura sobre inovação e colaboração tecnológica indica que redes bem estruturadas, com conexões amplas entre diferentes atores, favorecem o acesso a novas oportunidades, a circulação de conhecimento e o surgimento de soluções inovadoras [10][11] .
Aplicado à realidade da MA, esse modelo de rede organizada significa conectar a demanda da indústria — que busca soluções confiáveis, certificáveis e
economicamente viáveis — com a oferta de competências técnicas e científicas existente em universidades, ICTs, laboratórios e empresas de tecnologia. O hub orquestrador atua como agente neutro, capaz de:
- Reduzir custos de transação e tempo de integração, facilitando a formação de consórcios temporários de qualificação.
- Mitigar riscos tecnológicos e de confiabilidade, promovendo a rastreabilidade de evidências e resultados.
- Acelerar a difusão de padrões, normas e conhecimento técnico, fomentando interoperabilidade e maturidade coletiva.
- Estabelecer governança e métricas comuns, permitindo que o ecossistema evolua de forma coordenada e transparente.
Essa abordagem transforma o desafio da fragmentação em uma oportunidade de cooperação estruturada, em que cada participante — seja da indústria, academia, governo ou setor de serviços — contribui com sua especialização e se beneficia de um sistema que gera valor coletivo e confiança tecnológica. Assim, o modelo de rede não apenas otimiza recursos e competências, mas também cria as condições institucionais para o avanço sustentável da manufatura aditiva no Brasil.
Lições Globais: Benchmarks de Iniciativas de Referência
E o que outros países estão fazendo? Ao dar uma olhada no que está acontecendo em outros locais, o mundo já avançou com modelos semelhantes:
● America Makes (EUA) – primeiro instituto nacional de inovação em MA, reúne governo, indústria e academia para acelerar padrões e certificações [12]
● Fraunhofer IAPT (Alemanha) – referência em qualificação de peças metálicas, articulando fornecedores de pó, fabricantes de máquinas e OEMs [13] .
● Singapore Centre for 3D Printing (SC3DP) – hub de P&D voltado a aplicações industriais, com ênfase em qualificação de processos [14] .
● National Centre for Additive Manufacturing (Reino Unido) – integrado à
Manufacturing Technology Centre, foca em setores aeroespacial e defesa [15] .
● DNV (Noruega) – desenvolveu a norma DNV-ST-B203, hoje referência para qualificação de peças críticas em óleo & gás [9] .
Essas experiências mostram que, mais do que tecnologias, o que garante a confiabilidade é a existência de ecossistemas articulados com governança sólida. E é justamente essa a proposta do Brasil.
Construindo o Futuro da Manufatura Aditiva Confiável no Brasil
A Manufatura Aditiva representa uma das mais promissoras oportunidades da nova indústria brasileira. No entanto, seu pleno potencial — especialmente em aplicações críticas — depende de um passo fundamental: construir confiança. E confiança se constrói com metrologia, evidências e colaboração estruturada.
A qualificação de peças fabricadas aditivamente é um desafio que transcende a técnica. É também um desafio organizacional e sistêmico, exigindo integração entre ciência dos materiais, engenharia, normalização e gestão da qualidade. No Brasil, onde as competências ainda estão dispersas, a articulação em rede é a chave para transformar ilhas de excelência em um ecossistema integrado e confiável.
Inspirado em modelos internacionais de sucesso, o Centro Temático de Qualificação de Peças Críticas Fabricadas por Manufatura Aditiva (CTMA) — uma iniciativa da Fundação CERTI, em cooperação com o Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer (CTI), e com apoio do MCTI e da FINEP — nasce como o hub orquestrador dessa transformação.
A Fundação CERTI aporta ao CTMA sua experiência consolidada em metrologia, aliada à capacidade de articulação com a indústria e à gestão de projetos complexos de P&D&I. O CTI Renato Archer, por sua vez, contribui com sua liderança científica e tecnológica em manufatura aditiva, sua infraestrutura laboratorial de ponta e um histórico consistente de desenvolvimento de soluções nacionais para o setor. Essa combinação une capacidade técnica e capilaridade institucional, permitindo que o CTMA atue como um ponto de convergência entre ciência, tecnologia e aplicação industrial.
Embora tenha nascido a partir da cooperação entre a Fundação CERTI e o CTI Renato Archer, o CTMA é concebido como uma rede aberta e colaborativa, que acolhe novos parceiros dispostos a contribuir para o avanço da infraestrutura nacional de qualificação em manufatura aditiva. Laboratórios, ICTs, empresas, associações e órgãos reguladores são convidados a integrar essa rede e co-construir o ecossistema brasileiro de confiança em MA, fortalecendo a base tecnológica que sustentará a indústria avançada e a neoindustrialização no país.
O modelo do CTMA propõe um ecossistema colaborativo que gera benefícios claros para cada grupo de participantes. Citam-se como exemplos:
- Indústria usuária: acesso a metodologias validadas de qualificação, redução de risco tecnológico e suporte técnico-metrológico para adoção segura da manufatura aditiva em aplicações críticas.
- Prestadores de serviço e fornecedores de tecnologia: oportunidade de homologação de processos, integração a uma rede reconhecida e ampliação da credibilidade junto ao mercado.
- ICTs e universidades: inserção em projetos colaborativos com foco em resultados aplicados, acesso a infraestrutura compartilhada e estímulo à transferência de conhecimento e tecnologia.
- Órgãos reguladores e entidades normativas: suporte técnico-científico para a formulação de requisitos, guias e padrões nacionais de qualificação, fortalecendo a infraestrutura de qualidade brasileira e oferecendo mais segurança à indústria e aos usuários finais.
Ao conectar esses atores sob um modelo de governança neutra, o CTMA cria as condições para que a confiança na manufatura aditiva seja construída de forma colaborativa, rastreável e baseada em evidências, transformando o potencial tecnológico em vantagem competitiva e soberania industrial para o país.
Um convite à colaboração
A construção desse ecossistema não se faz de forma isolada. Ela requer a contribuição de laboratórios, fabricantes, universidades, reguladores e empresas usuárias comprometidas em elevar o patamar da indústria nacional.
Sobre os Autores:
– Gustavo Daniel Donatelli é Diretor Executivo do Centro de Metrologia e Instrumentação da Fundação CERTI, com ampla experiência em metrologia tridimensional avançada, incluindo técnicas de medição por cooordenadas e tomografia computadorizada de raios X.
– Pedro Yoshito Noritomi é Chefe da Divisão de Tecnologias para Produção e Saúde do CTI Renato Archer, com ampla experiência em pesquisa, desenvolvimento e aplicação industrial de tecnologias de manufatura aditiva.






