A Navegação de Linha Regular e a grave crise de capacidade portuária em Santos e no Brasil

1 – O CENTRONAVE – Centro Nacional de Navegação Transatlântica, fundado em 1907 e que congrega as principais empresas de navegação de longo curso atuantes no Brasil, apresenta aqui esclarecimentos e subsídios técnicos essenciais para a compreensão da grave crise atual de capacidade portuária no país.
2 – O esclarecimento decorre de visões equivocadas sobre a atividade de transporte marítimo de linha regular. E também de interpretações emitidas no TCU – Tribunal de Contas da União no Voto Revisor apresentado em 18 de novembro, que, embora movidas pelo legítimo intuito de proteger o interesse público, partem de premissas operacionais equivocadas sobre a natureza da indústria navegação de linha regular e atribuem a causas concorrenciais problemas que são, na verdade, de infraestrutura física. É preciso esclarecer a realidade da “beira do cais” onde a logística brasileira opera diariamente. Isto é pré-requisito essencial para a cura da doença logística que aflige a costa brasileira.
3 – Quanto à natureza da Navegação Marítima de Linha Regular, divulga-se narrativa que a atuação dos armadores (transportadores liners) no País seria caracterizada por um “oligopólio coordenado para prejudicar usuários”. Os dados mostram o oposto: um ambiente de grande competição.
O Porto de Santos, por exemplo, é servido hoje por inúmeros armadores, que competem ferozmente por carga. CMA CGM, COSCO, Evergreen, Grimaldi, Hapag-Lloyd, HMM, Maersk, MSC, ONE, PIL, Yang Ming e ZIM, entre outros, operam na navegação de longo curso oferecendo múltiplas opções aos exportadores e importadores brasileiros. É esta disputa por carga que é o motor que garante a eficiência do sistema, a despeito das limitações físicas impostas pela falta de infraestrutura.
4 – Considerando os elevados custos do transporte marítimo e a imprescindível necessidade de escala operacional, os armadores ainda celebram entre si acordos de operação que são de natureza estritamente operacional e física, trazendo a possibilidade de navios operados por um armador passarem a transportar contêineres de outros, fomentando a competitividade.
5 – A omissão de escala, por seu lado, não é uma escolha comercial do transportador marítimo. É um ato de desespero operacional causado pela doença da falta de capacidade. Santos opera hoje com taxas de ocupação acima de 90%, muito além do limite de eficiência de 65% preconizado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), gerando esperas de 3 a 4 dias.
6 – A tese de que armadores manipularam a oferta também foi investigada globalmente. Na pandemia de CV19 a Federal Maritime Commission (FMC) dos EUA conduziu uma investigação rigorosa sobre fretes e congestionamentos. A conclusão foi categórica: não houve conluio ou práticas abusivas; houve um choque de demanda frente a uma infraestrutura rígida e saturada.
7 – Quanto à “verticalização”, é hipotético o temor de que a operação de terminais por empresas do mesmo grupo de armadores gere “fechamento de mercado”, conforme atestam os órgãos técnicos de defesa da concorrência. Essa alegação equivocada reacende uma questão há muito discutida e superada, pois as manifestações técnicas do próprio TCU/AudPortoFerrovia, SEAE, ANTAQ, e, sobretudo, do CADE, afastaram de forma consistente qualquer necessidade de intervenção regulatória baseada na integração vertical, reconhecendo que ela gera eficiências relevantes à operação portuária e não acarreta riscos concorrenciais, como demonstrado nos precedentes envolvendo o inquérito de “self-preferencing” (recentemente arquivado com base na Nota técnica DEE 12-2025, após uma longa investigação minuciosa) e as operações CMA CGM/Santos Brasil e MSC/Wilson Sons.
8 – No caso recente da aquisição da Santos Brasil, a operação foi submetida ao escrutínio rigoroso do CADE, que analisou profundamente os riscos verticais. A conclusão (Parecer 3/2025/CGAA4/SGA1/SG) foi pela aprovação sem restrições, por não haver incentivo econômico racional para o terminal se fechar para outros armadores, pois precisa de volume, e porque a capacidade do terminal excede a demanda do armador do grupo proprietário, obrigando-o a buscar cargas de concorrentes para viabiliza-lo.
9 – A entrada de terminais verticalizados nos portos brasileiros foi o único fator capaz reduzir as filas para atracação na última década. O investimento privado das empresas dos grupos econômicos dos armadores trouxe eficiência onde o Estado não conseguiu prover. Atrair capital privado é assim uma solução a um problema crônico de infraestrutura portuária que atrasa o desenvolvimento do país.
Ao contrário do que se especula, terminais operados por empresas dos grupos dos armadores têm todo o interesse na fluidez, pois ganham com o giro do navio. Paradoxalmente, modelos de terminais puramente independentes (“bandeira branca”) podem ter incentivos desalinhados, lucrando excessivamente com a escassez de infraestrutura e as filas decorrentes e minimizando investimentos por imprevisibilidade de demanda de longo prazo (problema do “hold up”).
10 – Assim, a análise do Voto Revisor citado, apoiada em parecer antigo da SEAE de 2022, é inadequada pois ignora o parecer atualizado de 2025 e desconsidera o cenário atual de Santos. Não há fundamento para alegar barreiras “intransponíveis” à entrada de operadores independentes, tampouco para impor restrições concorrenciais futuras, já que o próprio CADE afirmou que tais riscos são meramente hipotéticos. As instâncias técnicas e regulatórias já rejeitaram a verticalização como causa de falha de mercado e reconheceram seus benefícios.
11 – O verdadeiro problema não é de mercado. O diagnóstico correto deve focar na causa raiz: o déficit de infraestrutura. Há mais de uma década, o Porto de Santos não recebe uma expansão significativa de cais. A demanda cresceu, os navios aumentaram de tamanho (chegando a 366 metros), mas a infraestrutura permaneceu estagnada. O custo anual dessa ineficiência (navios parados em fila) é estimado em R$ 1,6 bilhão. E este custo é pago pelo exportador, pelo importador e, em última instância, pelo consumidor brasileiro. Estima-se que deixamos de exportar anualmente por Santos US$ 20,6 bilhões por déficit de infraestrutura.
A proposta de vedar a participação de empresas que justamente são os players que detêm o capital, a expertise e o maior interesse direto na eficiência operacional, não só reduz a concorrência pelo ativo, diminuindo o valor de outorga e o compromisso de investimentos, como afasta o capital privado global em um momento em que o Estado não possui recursos para investir.
12 – O CENTRONAVE reitera seu compromisso com o desenvolvimento do Brasil, a liberdade concorrencial e a competição. Somos nós transportadores marítimos que conectamos a produção nacional ao mundo. Somos os primeiros a sofrer com a ineficiência portuária e os maiores interessados em sua resolução. O Brasil não precisa de menos concorrentes; precisa de mais berços, mais cais e mais obras.
Restringir a participação de quem quer investir, sob a premissa de um risco concorrencial que a própria unidade instrutora do TCU (AudPortoFerrovia), o Ministério Público junto ao TCU, o CADE e a ANTAQ (NOTA TÉCNICA nº 51/2025/GRP/SRG) já descartaram tecnicamente, é penalizar a solução em vez de atacar o problema: a falta de infraestrutura.






